terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

acendo um fósforo

sigo apalpando a estrada que me rouba a tarde.
mordem-me todos os lobos o contorno das orelhas
e atrás, logo atrás, as pulgas do silêncio espreitam.
estou nua na ingenuidade do tempo agrafado
à contramão. puxo a cortina verde da paisagem
e enrolo-me nela plastificando os meus passos.
tenho uma porta fechada da cabeça aos pés.
esqueci a chave numa fotografia qualquer.
aquela onde estamos de mão dada à eternidade.
picam-me as dúvidas na voz do bicho desejo
e dentro me roo nas verdes carnes do riso morto.
aqui, estou de frente a mim mesma, pendurada
numa palavra engasgada numa equação de sangue.
às cegas, estou no caminho que nos separa as fomes.
e amo-te na sede que me entala num tempo roto.
e antes que os vermes me comam os olhos de vez,
acendo um fósforo enquanto a minha loucura arde.

alma-nuvem

Na noite-branca disfarçam-se mil
lanças de frio na nossa pele rasgada.
Há um espaço estreito entre nós, perfil
de velha geografia desbotada

Ai amor-solidão, margem subtil
de carne na saudade macerada,
traz o dia despenhado, mesmo fútil
para a nossa alma-nuvem, quase nada...

Tu, herói por um fio

tu que me lês, tem coragem

toma aí conta do medo
não o deixes escapar
ata-o atado, põe dedo
no fio em nó de afogar,

que o medo tem de tudo
pernas, pés e até asas
fala tudo ou fica mudo
endoida vontades rasas.

o medo treme na boca
é um escuro nos ouvidos
é sombra no sono e pouca
fé nos passos de perdidos.

tem olhos que invocam
um sentido formigueiro
e tem mãos, e se tocam
o corpo se escoa inteiro.

tem a boca, tem o grito
ainda o bafo da morte
tem no cair mais aflito
a unha negra da sorte.

está em casa e fora dela
nas paredes, canos rotos
no ar que bate à janela
no arrotar dos esgotos.

anda louco por onde quer
faz esperas nas esquinas
a todos leva e vai ter
pessoas burras e finas.

um operário de bisturi
a pregar um funeral
os doentes a fugir
pela porta do hospital

um médico feito a martelo
na igreja a dizer missa
um político de chinelo
os crentes a dizer chiça

um juiz manco dos olhos
a fazer arranha-céus
e engenheiros aos molhos
a encartar os pneus

poetas de loucas rimas
atiram verbos pelo chão
trocam versos nas latrinas
e no fim lambem as mãos

e, deste poema apertado
num medo, de cu fechado
vai-se o poeta, rato medrado
deixa o leitor entalado....

tu leste-me, foi coragem...

(herói, podes largar o fio)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Como posso te esquecer?

Quando te olho sou pássaro
Como tu beijo horizontes
Quando te sinto sou água
A brotar pura em mil fontes

Quando me levas pela mão
Sou ave da babilónia
Sou no Éden do teu chão
Guerreira da Macedónia

Quando me tocas conquisto
Sóis de trigo, e sou raízes
Nas searas, e mais que isto
Sou o mar de mil países

Quando me beijas sou céu
E a terra inteira a teus pés
Via láctea mais tempo ateu
E o inteiro espaço através

Na esquina da solidão

esvaída em sangue, horrível sensação, de morte certa.
ali, o corpo todo, carne cortada, e mais, exposto o osso
da consciência, esfriam-se os membros, a boca aberta.
de lá a alma escapa, pouco a pouco, em grito grosso.

ergue-se, na tontura de partir-se, assim, quase desperta.
nos linhos duros, rubros, líquido fogo, no rosto o esboço
do que não é já. réstia de veia, um movimento que aperta
num nó de fome, sede, e sono fundo. no peito um fosso

onde o ar falha. no ventre os vermes, em solitária lida
vestem o veneno escuso desta vida. horrível sensação.
já não sente o andar e espalha, as vísceras pelo chão...

quem a cortou assim, com fina lâmina, em dor parida
quem lhe tirou assim, a frio, à luz do dia, em aflição
o coração? Foi o acaso que a matou na esquina solidão...