domingo, 3 de outubro de 2010

coisas

há uma jurisprudência nas pedras
antigas como o fogo
ligam-nas o tempo de onde vêm
numa história calada e concertada
há um sentido no brilho
dos seixos lavados
como os olhos das cidades
que nos fitam
há um som que vem de longe
do fim dos espaços
galáxia das noites fundas
nebulosa pensante
que invade a multidão
dos mares.
há toda uma vida corrida
nos cravos da liberdade
das montanhas suspensas
nos céus
tudo é infinito e belo
nas mãos da grandeza dos sentidos
eu busco, porém além de tudo
a purpura prisioneira
do sangue das coisas
e certeza das pedras
aquém de mim.

corpo longo

Na rua das sombras te procuro
entrecortada de luz que oscila
nas paredes frias de vão escuro
um gosto a sal, gesso, argila

Corpo longo deslizando duro
tocando luas em branca fila
suspensa do nada em mim seguro
pela névoa enlaço a nua vila

E nada alcanço, cortado o gesto
desencontrada de mim, serei um
corpo sem voz, sem nome algum

Sou no vazio da solidão um resto
de rua perdida de amor nenhum
e que sem querer se perdeu num.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

talvez o punhal

hoje sem falta, de manhã, traz os pés, as pernas, não esqueças as mãos e os braços que sem eles não se abraça, a boca para me falar os olhos para me ver. traz a alma para que toque na minha um pouco de luz. traz o amor e os beijos que a sede aperta. traz o poema do teu peito para que eu respire...
ou traz um punhal e acaba-me a dor
mas vem

(apunhalar-me de amor)

eu amo

rio,
eu rio, perdi o juízo
não lembro quando nem onde,
talvez me fosse roubado,
ou acaso extraviado
na certa perdi-me dele.

tenho uma branca
no corte da ideia
corre a máquina zero.

saltam outras tantas
da guilhotina.

e reparo:
mas onde pus a cabeça?
sinto-me rir é certo
mas os lábios?
quem os apagou
que os não vejo em mim?

como dizer agora os verbos
sem que a razão troce?
como cuspir estas moscas
que se chocam nos neurónios?

saio estrada fora atrás de bichos
que me comam o pensamento
ratos de letras,
que contaminem palavras coadas
de metafísica em factos.

quem me enfiou cabelos na boca?
que boca? que lábios? que riso?

eu amo...

sexta-feira, 2 de abril de 2010

partida de mim eu ando

Não quero amar aquele que partiu
Que outro amar demais ao longe vem.
Após um, um outro há mais além
Maior que o céu, que longe já me viu.

Já esqueci esse amor, luz que caiu
Do meu ser, no caminho que me tem
Liberta agora, vou comigo e bem
Perdida do que fui, e me omitiu.

E se este querer assim me faz perder
No lugar que foi d' outro, e já não lembro
Será tempo de me ser, e esquecer

Que partida de mim eu ando a ver
O outro eu por fora que desmembro
Desta parte que ficou, p'ra me dizer.

busca-dor

persigo-me no tempo que se nega
e tão longe está o que me ilude
mas perto queima-me este que me dá
a ideia de ser lume a juventude.
se acaso em ti passar minha desgraça
um frio na espinha, um gelo ao rosto
olha os olhos que te olham, e enlaça-
-m’estas mãos, perdidas no sol-posto.
que frias queimam de ausência, dedos
pelos teus, a pele antiga em sal-sabor,
unhas de tédio, pálida-fome, - rochedos
rasgando o corpo, em busca-dor.

ata-nos em nós de coração

enterra
o teu punhal
no meu ventre
e risca devagar
todo o contorno
de dedos bem abertos
desce o vale
a outra mão na cinta
agarra e sente
todo o meio a morder
a dor da gente.

aperta-me nos dentes
da loucura.
prende-nos na língua
gestual.
saliva-nos
na carne da palavra.

escava a pele da noite
em modo urgente
e cose fundo
nossos braços de mar
em partição.

e se ao pulsar do sangue
a vida escorre
ata-nos em nós
de coração.

Ponto-aflito

Como se viéssemos do fim do tempo
de todos os tempos do espaço inteiro
como se tivéssemos em nós o tempo
na nossa hora de olhar primeiro

Como se nos bastasse só aflorar
esse momento fundo já escrito
como se em viagem bastasse cruzar
as nossas almas em ponto aflito

Como que marcados num astro-rei
à terra mais firme deste amor-hino
e de um só toque fosse adeus sem lei
saudade razão partida - destino

segunda-feira, 15 de março de 2010

psicose afónica

psicose sanguínea pura
a espreitar pela ferida
da mente. a crosta dura.
exposta a dor tecida

bate cega a profundura
do caminho. está perdida.
ri. infecta-se na procura
e não se acha. transida

prostitui-se em veia escura
dopa-se na pele mordida
de azedia corrompida.

abre a boca na investida
entra a mosca, sai a vida
esconjurada. conjectura!….

sábado, 6 de março de 2010

Assombração

A morte
desce-me ao corpo
num chumbo dos pés à lama,
areia movediça,
que me suga a sombra.
Lentamente se descola da pele
o movimento.
Esvai-se o sangue na palavra
silenciada, lâmina do tempo,
ofertada.
Dádiva generosa de ti.
Os ossos, em fractura exposta
de mil pós, desmoronam-me
no respirar da ampulheta
Nem antes, nem depois.
Um vulto, espectro,
paira agora
nas margens de mim.

A vaidade no varal

há vermes por aqui.
homúnculos moribundos
no seu próprio cuspe.
passemos ao largo
desses ajoelhados
que nos arrancam as vestes
a pele, o couro;
com sorrisos metálicos
sugam-nos os olhos,
lambem-nos o ego.
esvaziam-nos.
mirram no corpo,
a pele já pergaminho,
memórias em pó.
única criação:
uma vaidade no varal.

PERDIDA

com esta língua percorro
o poema do teu corpo
a boca toda discorre
em verso o húmido enredo
e uma procura devora
covas, gumes, teu segredo.
os lábios cingem-te o tino
com a ideia do que come
e sobe e desce e vai e vem
numa ânsia mais que fome.
espalhadas dentro do forro
das pernas em firme aperto
as mãos coram extrapolam
descem ao marco, esfolam
no grito, em forte mordida.
sobe o sangue, a carne toda
ao meio, ao alto, perdida.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

acendo um fósforo

sigo apalpando a estrada que me rouba a tarde.
mordem-me todos os lobos o contorno das orelhas
e atrás, logo atrás, as pulgas do silêncio espreitam.
estou nua na ingenuidade do tempo agrafado
à contramão. puxo a cortina verde da paisagem
e enrolo-me nela plastificando os meus passos.
tenho uma porta fechada da cabeça aos pés.
esqueci a chave numa fotografia qualquer.
aquela onde estamos de mão dada à eternidade.
picam-me as dúvidas na voz do bicho desejo
e dentro me roo nas verdes carnes do riso morto.
aqui, estou de frente a mim mesma, pendurada
numa palavra engasgada numa equação de sangue.
às cegas, estou no caminho que nos separa as fomes.
e amo-te na sede que me entala num tempo roto.
e antes que os vermes me comam os olhos de vez,
acendo um fósforo enquanto a minha loucura arde.

alma-nuvem

Na noite-branca disfarçam-se mil
lanças de frio na nossa pele rasgada.
Há um espaço estreito entre nós, perfil
de velha geografia desbotada

Ai amor-solidão, margem subtil
de carne na saudade macerada,
traz o dia despenhado, mesmo fútil
para a nossa alma-nuvem, quase nada...

Tu, herói por um fio

tu que me lês, tem coragem

toma aí conta do medo
não o deixes escapar
ata-o atado, põe dedo
no fio em nó de afogar,

que o medo tem de tudo
pernas, pés e até asas
fala tudo ou fica mudo
endoida vontades rasas.

o medo treme na boca
é um escuro nos ouvidos
é sombra no sono e pouca
fé nos passos de perdidos.

tem olhos que invocam
um sentido formigueiro
e tem mãos, e se tocam
o corpo se escoa inteiro.

tem a boca, tem o grito
ainda o bafo da morte
tem no cair mais aflito
a unha negra da sorte.

está em casa e fora dela
nas paredes, canos rotos
no ar que bate à janela
no arrotar dos esgotos.

anda louco por onde quer
faz esperas nas esquinas
a todos leva e vai ter
pessoas burras e finas.

um operário de bisturi
a pregar um funeral
os doentes a fugir
pela porta do hospital

um médico feito a martelo
na igreja a dizer missa
um político de chinelo
os crentes a dizer chiça

um juiz manco dos olhos
a fazer arranha-céus
e engenheiros aos molhos
a encartar os pneus

poetas de loucas rimas
atiram verbos pelo chão
trocam versos nas latrinas
e no fim lambem as mãos

e, deste poema apertado
num medo, de cu fechado
vai-se o poeta, rato medrado
deixa o leitor entalado....

tu leste-me, foi coragem...

(herói, podes largar o fio)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Como posso te esquecer?

Quando te olho sou pássaro
Como tu beijo horizontes
Quando te sinto sou água
A brotar pura em mil fontes

Quando me levas pela mão
Sou ave da babilónia
Sou no Éden do teu chão
Guerreira da Macedónia

Quando me tocas conquisto
Sóis de trigo, e sou raízes
Nas searas, e mais que isto
Sou o mar de mil países

Quando me beijas sou céu
E a terra inteira a teus pés
Via láctea mais tempo ateu
E o inteiro espaço através

Na esquina da solidão

esvaída em sangue, horrível sensação, de morte certa.
ali, o corpo todo, carne cortada, e mais, exposto o osso
da consciência, esfriam-se os membros, a boca aberta.
de lá a alma escapa, pouco a pouco, em grito grosso.

ergue-se, na tontura de partir-se, assim, quase desperta.
nos linhos duros, rubros, líquido fogo, no rosto o esboço
do que não é já. réstia de veia, um movimento que aperta
num nó de fome, sede, e sono fundo. no peito um fosso

onde o ar falha. no ventre os vermes, em solitária lida
vestem o veneno escuso desta vida. horrível sensação.
já não sente o andar e espalha, as vísceras pelo chão...

quem a cortou assim, com fina lâmina, em dor parida
quem lhe tirou assim, a frio, à luz do dia, em aflição
o coração? Foi o acaso que a matou na esquina solidão...

sábado, 30 de janeiro de 2010

Ai dona tan fea

Ai, dona tan fea, naceste dum cão
a falar te babas, te ranhas e cheiras
tua boca de merda não vale tostão
aberta ou fechada parece que peidas

Ai dona tan fea, tan magra tan torta
como alma penada assustais a gente
va de retro satanás que estais morta
o cão vos roubou do inferno doente,

Ai dona tan fea, esqueci meu cantar
meus dentes tremem só de vos pensar
Ai dona tan fea, tan velha e tan seca
pareceis roída de ratos c'o a breca!

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

meu amado, meu amigo

meu amado meu amigo
com que oras noite fora?
fora de horas, ora digo
que é hora de querer agora.

meu amado meu amigo
que me encantas nesse canto
tenho-te no peito, abrigo
do que sinto por ti, tanto

meu amado, meu amigo
meus olhos por teu corcel
a galope pelo perigo
de ser mar na tua pele

meu amado meu amigo
vem de noite de mansinho
acordar meu corpo antigo
beijar-me devagarinho ...

sábado, 23 de janeiro de 2010

Dor genial

porque me deixaste um sonho rente
cortado nas raízes que eram de ouro
e agora, na saudade e longemente
metade de mim foste, e só eu choro?

porque me entregaste o teu sorriso
se levaste o meu, que já não sinto
o teu olhar guiando, o chão que piso
onde agora me perco e só me minto?

esta dor genial me segue e ri
e eu deliro, oscilo-me de espanto
rasgo-me na ausência e sou o pranto

que toca nos teus olhos vidra em ti
na chuva que te beija, te quer tanto
mesmo que só assim, te tenha aqui...

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

a democracia, essa fantasia

aqui, no meu país
sem tecto
a chuva cai
e esfria a casa
insistente
o inteiro corpo treme
e respinga
impunemente...
nas gentes
sorriso apagado
um dente podre
um cigarro acabado
no hálito um porre
e uma fome
que não morre...
nas janelas
tábuas cruzadas
o vento
às rabanadas
bate a porta
acelerada
e a chave no chão
estuprada...
na vida vadia
sem pauta
ou batuta
um violão chia
rouco sem cordas
um escarro melodia
a toda a hora
do dia:
a democracia
essa fantasia...

domingo, 17 de janeiro de 2010

Vestes-me de amor em beijos lidos

Trazes-me a alvorada de mansinho
no aconchego do teu meio
acordo na luz acesa dos teus olhos
e na tua mão me entrego e leio.
Entranho em mim o poema só teu
de um dizer que sem pedir me dás
meada de sonho da cor do céu
enrolado na estrela que te traz..
Lavo a alma nas margens do sorriso
que me ofertas num gosto de romã
e no teu corpo dado faço o piso
que seguro nos lábios da manhã.
Espreguiço-me no ar do teu abraço
enxugo-me na toalha do teu verso
ensaio o amor declamado num passo
o meu no teu num tom que apresso.
E tu, asa de paz, lençol de linho
murmuras o belo aos meus sentidos
e no secreto vão do teu carinho
vestes-me de amor em beijos lidos...